domingo, 8 de junho de 2008

Mais um pouco sobre Veríssimo ...

A ficção de Érico Veríssimo guarda um viço, um frescor de obra recém-criada, como nenhuma outra no tempo. Uma comoção, uma autenticidade que não é fruto da técnica ou do estilo. Talvez explique que lhe retomemos as narrativas como se fossem pela primeira vez. E provavelmente mais do que a de seus companheiros de geração, testemunham a íntima relação entre as estruturas adotadas e os segmentos ou modulações da realidade abrangida.
Longe de evoluir em linha reta, Érico parece ter procurado até o fim a melhor forma de exprimir sua visão de mundo. Se duas maneiras ou estruturas descortinam ao longo desse percurso, é porque a oscilação não corre por conta da simples preferência estética: revela também, senão, preponderantemente, motivações de ordem ética ou ideológica. Mesclando-se incontáveis vezes no fio dos anos, uma e outras assinalam um embate que persistia mesmo quando uma delas se afigurava vitoriosa.
Érico Veríssimo principia com uma novela adocicada – Clarissa – da linhagem da Moreninha, Inocência e outras do gênero. Escrita em 1932, numa altura em que a ficção nordestina dava mostras de se engajar na luta social pela emancipação dos humilhados e ofendidos, é uma história suave, de uma adolescente sonhadora. É quase uma narrativa para jovens.
Assim, as duas vertentes, a da tradição lírica, que remonta longinquamente ao Romantismo e mais de perto ao Simbolismo, e a da modernidade, se defrontam na obra de 1933, apontando os caminhos que o autor trilharia, praticamente até o fim.
Certamente dando conta de que Clarissa parecia seguir figurino obsoleto, Érico Veríssimo decide investir na modernidade e escreve Caminhos Cruzados. Num movimento dialético, que vai percorrer-lhe toda a obra, procura fixar o reverso da medalha. Onde se via sinal negativo, punha-se o positivo, e vice-versa; onde imperava o lirismo evanescente, desabrochava agora o verismo, e assim por diante. Sem abandonar, no entanto, as ligações com as formas crepusculares da estética simbolista.
Érico Veríssimo reconhece tratar-se dum “romance um tanto frio e cínico”. Não obstante, era de suas narrativas mais ousadas e, quem sabe, a mais bem realizada antes dO Tempo e Vento. Romance típico, experimenta as técnicas modernas patentes no autor dO Contraponto, como o simultaneísmo da ação e o associacionismo. Rompida a seqüência temporal, característica da novela e predominante no romance tradicional, o ficcionista focaliza cenas passadas ao mesmo tempo em lugares diferentes, aglutinadas por correlação, como se um liame secreto vinculasse o destino e as ações dos personagens. Esse recurso dá mostras de requinte na confluência de casos ocorridos no mesmo prédio de apartamentos, iniludível embrião dO resto é silêncio.
O tom de sátira contra o cinema, uma sátira à inglesa, não esconde o impacto dessa arte sobre o próprio autor, a principiar na técnica narrativa e a terminar na ambiência de suas histórias, sobretudo as de temática urbana. Ao mesmo tempo, começam a surgir preocupações no tocante à participação política e à justiça social, deixando entrever uma corrente subterrânea posteriormente aflorada à superfície.
Dividido entre os apelos da razão e do coração o escritor retorna a Clarissa em Música ao Longe. No prefácio que escreveu para a edição de 1956 da obra, de franca relevância para a compreensão do autor, considera-o “um livro medíocre, embora seu tema pudesse ter comportado uma certa grandiosidade, caso fosse bem tratado”. História escrita em “quinze ou vinte dias, especialmente para concorrer ao ‘Prêmio de Romance Machado de Assis’, instituído em 1934 pela Cia. Editora Nacional de São Paulo”.
Em Um Lugar ao Sol, o autor situa Clarissa e Vasco em Porto Alegre. E mais uma vez o prefácio, redigido para a edição de suas Obras (1956), se torna peça indispensável à avaliação da obra: o autor confessa tratar-se de”um romance desconjuntado”, por “reunir num mesmo livro personagens de histórias anteriores separadas no espaço”. E resume seu pensamento, dizendo que “Um Lugar ao Sol peca por ser uma transcrição demasiadamente literal da vida”.
Um Lugar ao Sol e as obras anteriores documentam a gradativa tomada de consciência de um ficcionista vigilante: cada narrativa é um passo adiante no aperfeiçoamento do ofício de contar histórias e, a um só tempo, na sondagem da realidade sem disfarces. Sua “educação sentimental”, o seu “romance de aprendizagem” é precisamente sua obra. Mas entendida esta em junção com a vida, a própria e a alheia, ou como espelho e germe da vida.
O que nos outros ficcionistas da época é uma busca nem sempre lograda, isto é, do literário como “errata da vida”, nele é uma constante. Não porque deixassem de recorrer ao baú da memória, senão porque se esquecem de que a fusão da Vida e da Literatura ganharia em aliviar o componente histórico, factual, em nome do existencial, ou essencial. E isso ele realiza plenamente. Tudo se passa como se não tendo acontecimentos pessoais a relatar, se dispusesse a procurar nas camadas profundas de sua interioridade, e nas dos semelhantes, a razão da obra literária. Assim, alcançava aquilo que os contemporâneos acreditavam encontrar no autobiográfico ou no mero realismo fotográfico. Se nada mais contivesse sua ficção bastava esse contributo pra lhe conferir um lugar à parte na Literatura do tempo.
Com Olhai os lírios do campo, o autor afasta-se da série novelesca em torno de Clarissa e outros. Experimentando ainda uma vez a técnica do contraponto, embora reduzida a dois planos – passado/presente –, o romance também se concentra na questão da solidariedade, representada pelo Cristianismo e pelo Socialismo.Eugênio casa-se com por interesse, depois de ligar-se intimamnete a Olívia. Mais tarde, farto de encenação, separa-se da mulher, e Olívia morre, deixando-lhe uma filha.
Pouco dura o interlúdio, e eis o autor de novo às voltas como o microcosmos das Clarissa: Saga. Distribuída sinfonicamente em três partes, a narrativa começa por situar Vasco engajado na Revolução Espanhola, ao lado das forças republicanas, depois num capo de concentração e, depois por fim, de regresso, para os braços de Clarissa e a mudança para o campo.
É das obras mais bem construídas da fase inicial de sua carreira. O assunto, deixando-lhe livre a imaginação, permitia-lhe trabalhar à vontade a matéria fictiva. Preparava-se, assim, para a empresa maior, não apenas a saga de um indivíduo perdido no torvelinho duma guerra cruenta e fratricida, senão a de um povo através de sua história: a do povo gaúcho. Atingia, finalmente, a completa realização de seu projeto, posto em prática, mesmo que involuntariamente, desde Clarissa: a saga do Rio Grande do Sul.
Todavia, antes de se lançar no seu mais ambicioso empreendimento – O tempo e o vento – o autor ainda tentará produzir romances, como O resto é silêncio, o qual não dissimula sua artificiosidade estrutural, o intelectualismo de sua concepção – o expediente deve reunir várias personagens em conseqüência de um suicídio que todas presenciam. Afinal, sua única, porém decisiva, falha: as conhecidas qualidades de observador entre lírico e realista saem comprometidas pela facilidade do achado técnico.
A pós um intervalo de sete anos , no qual apenas dera a lume A volta do Gato Preto, Érico Veríssimo retorna à cena literária com sua obra-prima: O Tempo e o Vento. Trilogia em cinco volumes, com os títulos de “O continente”, “O Retrato” e “O Arquipélago”, constitui um painel histórico do Rio Grande do Sul entre 1745 e 1945. Novela típica, marcada pela sucessão de acontecimentos na ordem do tempo.
Com o tempo e o Vento o escritor encontrava sua maneira mais funda de ser como homem e profissional das letras: a estrutura da novela, a serviço da epopéia de seu povo. Poucas vezes, na modernidade, a beleza da linguagem em prosa alcançou tal grau de transparência e emoção, como se cada aventura ou episódio pairasse numa zona intemporal e inespacial, próxima da lenda ou do mito.
O grande impacto da obra reside em “O Continente”. Graças ao tom épico, de mistura com um lirismo carregado de lendas, presságios e crendices, e ao mesmo tempo de um sentimento de aceitação meio animal do destino. Na segunda parte, ainda recuada no tempo, permanece algo desse perfume original, de rusticidade primitiva de desbravamento pioneiro. Mas em “O Arquipélago”, o registro como que jornalístico, de que o autor tinha plena consciência predomina. E as personagens, ou são históricas, e por isso limitadas pelo recorte verossímil que devem apresentar, ou herdeiras daquelas figuras remotas, pálidas mutações de sua energia bruta e telúrica. Decadência, numa palavra, como afinal desejava o novelista mostrar.
Em meio à trilogia, entre “O Retrato” e “O Arquipélago” o escritor publica uma obra autônoma: Noite. O clima que permeia a narrativa é o da belle époque, para os lados do Decadentismo: o absurdo provém do vago, do indeciso, do indeterminado, como se tudo ao passasse de pesadelo ou delírio do narrador. Clima fantasmagórico, que lembraria ainda a ficção introspectiva em moda no tempo. Tudo, diálogos, monólogos interiores, cenas e situações, transpira atmosfera onírica, espectral, poética, onde o realismo cede lugar ao imaginário doe viés simbolista. Noite parece retomar e alargar, no seu penumbrismo decadente, o tom lírico do ciclo de Clarissa.
Não obstante, o autor ainda explorará o absurdo em Incidente em Antares, espécie de fábula moderna, entre satírica e fantástica, ao redor de um acontecimento ocorrido em Antares, cidade gaúcha imaginária, no dia 13 de dezembro de 1963. Sobre um fundo histórico verídico esbate-se o insólito evento, gerado pela greve dos operários: mortos insepultos deblateram com os vivos numa praça em Antares.
O narrador esmera-se em minúcias histórico-políticas, inclusive referindo protagonistas reais. Espécie de trabalho forçado, tarefa imposta pela coerência ideológica à imaginação, mais História e/ou Jornalismo que Literatura, a narrativa não esconde sua monotonia, sobretudo durante a fastidiosa reconstituição histórica.
Nas derradeiras obras, Érico Veríssimo deixa o ambiente gaúcho, dando expansão ao seu cosmopolitismo latente. O Senhor embaixador passa-se em Washington – que o autor teria conhecido de perto-, observa-se análoga contensão. A vida cinematográfica e huxleyana transforma-se numa visão crítica e meio ácida, com notas de natureza política. Essa metamorfose não envolve, porém a recusa da objetividade, que é sinônimo de coerência, honestidade e lucidez, em favos da análise unilateral, maniqueísta, dos problemas sociais e ideológicos.
A notória atualidade dO Senhor Embaixador implica o adensamento da participação política do escritor, que a obra seguinte e última, O Prisioneiro confirmaria. Agora, o teatro das operações é o Sudoeste Asiático. Não importa que o drama se desenrole longe de suas vistas: levado pela proverbial generosidade, ele se engaja na luta pelos direitos humanos, acima dos partidos e das ideologias.
Não surpreende que sejam complementares e não conflitantes as duas faces de sua obra: a gaúcha telúrica expressa em novelas, a gaúcha citadina e cosmopolita, moldada em romances. Seja buscando retratar o homo gauchus, seja projetando-o no homo universalis, umas e outras carregam um não seu quê de comovente e atual que resiste à prova do tempo.
O fascínio de Érico Veríssimo reside no fato de ser um escritor aberto, franco que logo atrai o leitor para a sua intimidade, para o convívio com os seres que lhe povoam a mente. Narra como se desfiasse confidências, num à vontade de quem não tem nada a esconder e, a um só tempo, guarda tesouros de fantasia, não raro extraídos da vivência, sua ou alheia, submetida ao crivo da imaginação. Narrativas que passamos a crer sejam as da própria vida: ficção e realidade se fundem, numa simbiose em que não se sabe o que mais salientar, se a ficção permeada pela vida, se esta iluminada por aquela. Um ficcionista de garra, dono dum invulgar dom de empatia, que nem todos os pares ostentam.


Livro: MOISÉS, Massaud. História da Literatura Brasileira: Modernismo. 3ª ed, revista e aumentada. São Paulo, SP: Cultrix, 1996. p. 223 a 236.

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