Abaixo, segue uma pesquisa muito interessante sobre o contexto cultural, social e político em que Érico Veríssimo se enquadrava.
Quem desferiu o golpe foi a moderna indústria cultural, através de dois produtos sofisticados e eficazes: a canção e a telenovela
O título é um exagero. É um exagero? É e não é. Para quem vinha com os sonhos de país grande e desenvolvido, que estava em vias de generalizar a educação básica para todos, fazer a reforma agrária que tiraria o campo da Idade Média, hospedar e desenvolver a indústria moderna, alcançar o futuro, em suma - para quem vinha desse sonho, 1968 e seus entornos foram mesmo um golpe quase letal na literatura. Quem desferiu o golpe foi a moderna indústria cultural, por meio de dois de seus produtos mais sofisticados e eficazes: a canção e a telenovela.Antes de falar delas, vale uma recuperação do contexto. Por um momento, o leitor considere que na década de 1960 o Brasil acompanhava ao vivo o auge da carreira e do talento dos seguintes escritores: Manuel Bandeira, Jorge Amado, Erico Verissimo, Clarice Lispector, Guimarães Rosa, Nelson Rodrigues, Rubem Braga, Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto, Mario Quintana; para não dizer que não falei de gente menor mas muito interessante, também estavam em ponto alto de seu desempenho gente como os poetas concretos, Antônio Callado, Carlos Heitor Cony, Dalton Trevisan. Uma outra geração, mais recente, apresentava suas armas: nos mesmos anos 1960 ou pouco antes estrearam Rubem Fonseca, Moacyr Scliar, Ferreira Gullar, Armindo Trevisan e vários outros.Não era pouca coisa, e pelo contrário era muita. Considerada como conjunto, essa época não tem nada do mesmo nível em qualquer outro momento da vida do país e mesmo da língua portuguesa. Em todos os gêneros (deixei de falar da crítica literária, que no entanto estava também num belo momento, com os já clássicos Tristão de Athaíde, Álvaro Lins, Augusto Meyer, Guilhermino César, mais alguns acadêmicos talentosos como Antonio Candido, e a nova geração, com José Guilherme Merquior e Roberto Schwarz à frente), a literatura estava muito bem servida. Todos os gêneros: inclusive no mais árduo de todos, ao que parece, no Brasil, a dramaturgia. Estava ali Nelson Rodrigues, ao lado de Dias Gomes e outros, mandando bala e vendo nascer uma nova e talentosa geração, a de Plínio Marcos, Gianfrancesco Guarnieri, Augusto Boal, Oduvaldo Vianna Filho, Chico Buarque.O que essa gente representava, vista à distância de mais de 40 anos, era a esperança, quase a certeza, de que, estando maduros em matéria de produção literária, poderíamos esperar maturidade também na outra ponta do processo, a leitura, a criação e o desenvolvimento de leitores, massas de leitores, para usufruir tal e tamanha qualidade. As gerações em atuação naquele momento, somadas ao patrimônio anterior já produzido na língua - Camões, Vieira, Machado, Fernando Pessoa, Graciliano - , nos autorizava a sonhar com uma comunidade real de leitores, que deixaria no passado as terríveis sombras sociais que por tanto tempo excluíram a população do ensino, da leitura, da inteligência formal.Mas veio o Golpe de 64, que em 1968 ganharia contornos mais restritivos ainda contra o exercício da inteligência; veio uma reforma de ensino que emburreceu enormemente a escola e a universidade; e veio também, como uma onda irresistível para os países com tradição frágil justamente na leitura e na crítica, a moderna indústria cultural, que oferecia às massas uma série de itens de lazer e refrigério para a alma, itens que por certo iriam expressar as ideologias em disputa naquele momento.
Eram eles a música jovem, mais precisamente a canção, e a telenovela. Usufruindo dessas duas novidades, as massas supririam suas necessidades de poesia e de narrativa, respectivamente. A poesia de livro, assim como o romance e mesmo o teatro, sentiram o tranco, porque a curva ascendente em que vinham fatalmente decairia, e assim também as esperanças de um país de leitores em grande quantidade, que ainda não temos.A música popular se expressava em variados estilos. Havia o rock, de grande impacto entre a garotada menos letrada e suburbana - e quem não era pouco letrado e suburbano, num país de intensa migração para as cidades? - , que no Brasil floresceu principalmente na figura da Jovem Guarda, com um grande artista como Roberto Carlos protagonizando a cena, rock que conhecia desdobramentos mais e mais criativos, com um ponto alto na obra dos Beatles, que em 68 lançaram pérolas como Hey Jude e Revolution, mais todo o Álbum Branco. Havia a bossa nova, surgida em 1958 mas consolidada nos anos 60, contando com um trio de gênios na vanguarda, o músico e maestro Tom Jobim, o poeta e agora letrista Vinícius de Morais e o intérprete-criador João Gilberto, geradores de um patrimônio que se desdobraria na obra de muita gente boa, a começar de Chico Buarque; por fora da bossa nova, que ganhou o coração da juventude mais descolada e culta, corria sua carreira o samba, já com uma história considerável, que estava apresentando ao mundo uma notável renovação com um Paulinho da Viola.A matéria folclórica das regiões rurais e/ou atrasadas do Brasil recebia tratamento novo, agora combinada com denúncia das desigualdades sociais e promessas de revolução, como foi o caso exemplar de Geraldo Vandré e Theo de Barros em Disparada, mas era também o alimento de um talento discreto como Edu Lobo. De dentro do mundo negro, que no final dos anos 60 se percebeu dotado de "Black Power", brotavam variedades sensacionais de música, que no Brasil se expressaram no talento de Jorge Ben, Wilson Simonal e Tim Maia. E havia uma intensa troca entre todas essas modalidades de música, de vez em quando trombando com visões conservadores que pretendiam purismo (a risível passeata contra o uso da guitarra elétrica foi um caso), mas noutras vezes encontrando soluções de grande criatividade e impacto, como ocorreu na obra de Caetano Veloso, Gilberto Gil, Mutantes e Tom Zé, que entraram em circuito até com gente da música erudita, como o maestro Rogério Duprat.Convenhamos: a poesia perdeu terreno para uma geração de talentos, dentre os quais alguns gênios, que na canção realmente abastecem parte grande das necessidades líricas do brasileiro e de todo mundo que freqüente o português. Atire a primeira pedra, iaiá, aquele que não tem meia dúzia de canções como hinos pessoais, repetidos na memória e no coração como mantras.Para azar da literatura lírica, a de livro, esse poderoso grupo se expressava, nos anos 60, não apenas em shows e em discos, mas no veículo moderno, moderníssimo, veloz, de sucesso acachapante e mais uma vez irresistível pela baixa tradição letrada, que era a televisão. Foram os tempos dos festivais da canção, no Rio e em São Paulo, gerados por estações de tevê que viram cair em seu colo, em 1969, a transmissão via satélite, outro marco da história cultural do país, por alinhar na mesma emissão a maior parte do território do país. Não é exagero dizer que a canção brasileira fez a tevê, tanto quanto esta fez a canção, quanto ao impacto massivo.E para azar da literatura narrativa, a de livro, a mesma televisão incorporou a tarefa de contar histórias. Não foi só no Brasil que tal aconteceu, claro, mas aqui, mais uma vez pela fragilidade da leitura e mais uma vez pelo grande talento de dramaturgos, atores, diretores e os mesmos cancionistas e músicos, a telenovela triunfou de modo impressionante. No plano popular trivial, tratava-se apenas de passar para o reino da imagem o que antes era a radionovela, como ocorreu com o melodrama folhetinesco O Direito de Nascer, que foi ao ar em 1964 e 1965; mas no plano mais moderno, mais jovem, mais urbano e dotado até de ironia e crítica, apareceu em 1968/1969 Beto Rockfeller, novela de Bráulio Pedroso, com uma inacreditável atualidade em matéria de linguagem e comportamento: protagonistas jovens, na São Paulo que crescia como sempre, tentando descolar um jeito de se dar bem. (Um paralelo literário para pensar: um dos primeiros romances relevantes escritos no Brasil é Memórias de um Sargento de Milícias, de 1852, com linguagem arejada e um protagonista jovem, querendo descolar um jeito de se dar bem.)A literatura (de livro) perdeu terreno, ou ao menos deixou de ganhar, o que é uma lástima, vistas as coisas do ângulo da cultura exigente e do debate crítico; mas perdeu para duas modalidades artísticas de grande interesse, que em seus melhores momentos se mostraram capazes de expressar profundamente a vida de nosso tempo e de nosso lugar, o que é um ganho, do ponto de vista da dinâmica real da vida cultural. No fim das contas literatura de livro não morreu, e aliás até recobrou força no fim do ciclo autoritário de 1964, quando, junto com a canção e a telenovela, repensou o país. Não estamos no melhor dos mundos, por certo; mas creio que o legado real de 1968 obriga a espantar as ilusões e reinventar nosso lugar no mundo.
Extraído: http://zerohora.clicrbs.com.br/zerohora/jsp/default2.jsp?uf=1&local=1&source=a1950865.xml&template=3898.dwt&edition=10016§ion=102 – acesso em 09 de junho de 2008.
Texto de LUÍS AUGUSTO FISCHER Professor, doutor em letras e escritor
Quem desferiu o golpe foi a moderna indústria cultural, através de dois produtos sofisticados e eficazes: a canção e a telenovela
O título é um exagero. É um exagero? É e não é. Para quem vinha com os sonhos de país grande e desenvolvido, que estava em vias de generalizar a educação básica para todos, fazer a reforma agrária que tiraria o campo da Idade Média, hospedar e desenvolver a indústria moderna, alcançar o futuro, em suma - para quem vinha desse sonho, 1968 e seus entornos foram mesmo um golpe quase letal na literatura. Quem desferiu o golpe foi a moderna indústria cultural, por meio de dois de seus produtos mais sofisticados e eficazes: a canção e a telenovela.Antes de falar delas, vale uma recuperação do contexto. Por um momento, o leitor considere que na década de 1960 o Brasil acompanhava ao vivo o auge da carreira e do talento dos seguintes escritores: Manuel Bandeira, Jorge Amado, Erico Verissimo, Clarice Lispector, Guimarães Rosa, Nelson Rodrigues, Rubem Braga, Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto, Mario Quintana; para não dizer que não falei de gente menor mas muito interessante, também estavam em ponto alto de seu desempenho gente como os poetas concretos, Antônio Callado, Carlos Heitor Cony, Dalton Trevisan. Uma outra geração, mais recente, apresentava suas armas: nos mesmos anos 1960 ou pouco antes estrearam Rubem Fonseca, Moacyr Scliar, Ferreira Gullar, Armindo Trevisan e vários outros.Não era pouca coisa, e pelo contrário era muita. Considerada como conjunto, essa época não tem nada do mesmo nível em qualquer outro momento da vida do país e mesmo da língua portuguesa. Em todos os gêneros (deixei de falar da crítica literária, que no entanto estava também num belo momento, com os já clássicos Tristão de Athaíde, Álvaro Lins, Augusto Meyer, Guilhermino César, mais alguns acadêmicos talentosos como Antonio Candido, e a nova geração, com José Guilherme Merquior e Roberto Schwarz à frente), a literatura estava muito bem servida. Todos os gêneros: inclusive no mais árduo de todos, ao que parece, no Brasil, a dramaturgia. Estava ali Nelson Rodrigues, ao lado de Dias Gomes e outros, mandando bala e vendo nascer uma nova e talentosa geração, a de Plínio Marcos, Gianfrancesco Guarnieri, Augusto Boal, Oduvaldo Vianna Filho, Chico Buarque.O que essa gente representava, vista à distância de mais de 40 anos, era a esperança, quase a certeza, de que, estando maduros em matéria de produção literária, poderíamos esperar maturidade também na outra ponta do processo, a leitura, a criação e o desenvolvimento de leitores, massas de leitores, para usufruir tal e tamanha qualidade. As gerações em atuação naquele momento, somadas ao patrimônio anterior já produzido na língua - Camões, Vieira, Machado, Fernando Pessoa, Graciliano - , nos autorizava a sonhar com uma comunidade real de leitores, que deixaria no passado as terríveis sombras sociais que por tanto tempo excluíram a população do ensino, da leitura, da inteligência formal.Mas veio o Golpe de 64, que em 1968 ganharia contornos mais restritivos ainda contra o exercício da inteligência; veio uma reforma de ensino que emburreceu enormemente a escola e a universidade; e veio também, como uma onda irresistível para os países com tradição frágil justamente na leitura e na crítica, a moderna indústria cultural, que oferecia às massas uma série de itens de lazer e refrigério para a alma, itens que por certo iriam expressar as ideologias em disputa naquele momento.
Extraído: http://zerohora.clicrbs.com.br/zerohora/jsp/default2.jsp?uf=1&local=1&source=a1950865.xml&template=3898.dwt&edition=10016§ion=102 – acesso em 09 de junho de 2008.
Texto de LUÍS AUGUSTO FISCHER Professor, doutor em letras e escritor
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